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GV CULT - Criatividade e Cultura

A história da arte na definição do Renascimento (II)

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30/09/2014 09h00

Por Bernardo Buarque de Hollanda.

O termo humanismo é uma invenção do século XIX. Ele vem de "humanidades" – studia humanitatis ou estudos clássicos –, como justamente a Renascença os definiu. Stricto sensu, este termo designa para os séculos XV e XVI os novos métodos críticos, filológicos e históricos aplicados aos textos clássicos, escritos em latim e grego. Progressivamente, ele tomou uma significação mais ampla, designando uma visão otimista do homem e uma exaltação de sua dignidade humana. A mudança de sentido não é totalmente anacrônica: os textos clássicos puderam inspirar muitos sentimentos a seus leitores, entusiastas da Renascença. Mas não se pode chamar de "humanistas" todos os eruditos da época, no sentido atual mais corrente do termo.

O estudo do humanismo coloca um problema histórico: não se trata de reduzi-lo a uma simples técnica erudita, mesmo se o seu verdadeiro denominador comum seja este método crítico filológico. Tal método teve implicações intelectuais, religiosas e políticas que ultrapassaram largamente a simples esfera da erudição. Ao mesmo tempo, suas consequências dificilmente podem ser agrupadas em uma construção ideológica coerente.

O humanismo tem uma pertinência histórica bem diferente segundo as correntes historiográficas: alguns o veem como um conceito anacrônico e artificial; outros, de modos variados, lhes dão implicitamente um programa coerente. Este diz respeito ao primado da crítica sobre a tradição, do saber sobre o Estado e às vezes do indivíduo sobre a coletividade.

Consoante uma definição clássica, os studia humanitatis nascem com Francesco Petrarca (1304-1374). Em 1470, este fenômeno cultural é já antigo e produziu várias gerações de intelectuais. Para compreender o humanismo de 1470 a 1560, convém não ignorar estas primeiras gerações que continuam a ter uma influência imensa, graças à sua difusão pela imprensa. As obras de Lorenzo Valla (1407-1457) e Leon Battista Alberti (1404-1472) têm grande influência bem antes do século XVI.

Ainda no sentido de uma apropriada compreensão dessa corrente humanista, é necessário avaliar em que medida ela representa uma ruptura com o saber medieval. Enquanto estudiosos como o historiador italiano Eugênio Garin identificam uma quebra com a Idade Média, para outros a ruptura foi exagerada.

Um dos historiadores mais importantes do pensamento humanista, o alemão Paul Oskar Kristeller (1905-1999), argumenta neste sentido, em uma coletânea por ele organizada: "Renaissance thought and its sources" (1979). O humanismo, elemento periférico na história da Renascença, é herdeiro amalgamado da retórica medieval: não apenas ele não desaparece com este, como não se opõe sempre a ele.

Outro historiador, Charles Trinkaus (1999), vai ao encontro de Kristeller e insiste sobre essa continuidade. Se ele trata, sobretudo, de Lorenzo Valla e Coluccio Salutati (1331-1406), pode-se dizer que seus ensaios mais teóricos permitem compreender o humanismo em relação com o pensamento da Idade Média tardia e não somente em oposição radical e sistemática ao período medieval.

Da mesma maneira que o hermetismo constitui um dos aspectos essenciais da filosofia da Renascença, sobretudo em sua componente neoplatônica, a noção de "segredo do universo" está no centro da pesquisa científica, que seria anacrônica se isolada do resto dos studia humanitatis. O discurso científico se confunde com a metafísica, como o mostra Alexandre Koyré (1892-1964) no estudo sobre o alquimista e astrólogo Paracelso (1493-1541): "Mystiques, spirituels et alchimistes du XVIe siècle allemand" (1971).

Anthony Grafton mostra o choque intelectual produzido pela descoberta do Novo Mundo e analisa suas consequências não somente sobre o pensamento geográfico e cosmográfico, mas também os seus efeitos espirituais sobre os sábios europeus, que deviam conciliar esta descoberta com a tradição antiga reverenciada pelos humanistas. A verdade normativa se devia fazer com aquela, empírica, de exploração geográfica e histórica, mesmo se em 1560 estivesse-se ainda longe da "revolução científica".

É consenso historiográfico que o humanismo nasce e se desenvolve, sobretudo, na Itália. Mesmo se é possível constatar em outras regiões da Europa correntes intelectuais similares, elas não têm a coerência e o mesmo eco que tiveram na Península itálica.

Uma das escolas humanísticas mais poderosas teve como berço a cidade de Florença, onde se criou a Academia inspirada em Platão. O platonismo consistiu na exaltação de um espiritualismo que se ligava à produção artística e cultural. Nicolau de Cusa, Pico Della Mirandola e Marsilo Ficino faziam de suas obras uma espécie de filosofia da beleza, em que a manifestação do Divino e a adoração a Deus se operava por intermédio do belo, da arte e do sublime. Para isto, não bastava a imitação técnica da natureza, mas a busca da perfeição absoluta, que só se dava com o conhecimento das leis naturais que possibilitavam tal perfeição. Para se chegar à harmonia, era necessário estudar matemática, a ciência e linguagem da exatidão.

Por outro lado, é abusivo falar de uma unidade do humanismo italiano, tantas são as escolas locais, com suas especificidades, que mesmo a circulação de homens, textos e ideias não as uniformizam. Deve-se estar consciente desta diversidade e não se deve julgar o humanismo italiano como um conjunto, à sombra de Florença, cidade de Laurent o Magnífico. É forçoso constatar a existência dos centros humanistas fora de Florença, em cidades como Pádua – o centro universitário mais importante da Renascença –, Veneza e Roma.

Em paralelo à Academia de Florença, portanto, que se voltava ao espiritual e ao artístico, havia a Escola aristotélica de Pádua, com intelectuais ligados à república de Veneza, região com menos influência da Igreja, onde se desenvolveram estudos práticos sobre medicina, anatomia e vários fenômenos naturais, com menos preocupação teológica. O Aristóteles de Pádua não era o mesmo do aristotelismo de Tomás de Aquino, muito famoso nas universidades européias, com suas classificações de História Natural. Eles se associavam ao Aristóteles estudado pelo comentador árabe Averrois (1126-1198). Ali se formaram Nicolau Copérnico (1473-1543) e Galileu Galilei (1564-1642). Esta Escola rompeu com a idéia de milagre, de imortalidade e de criação, defendendo a supremacia da razão.

Já o humanismo romano teve, como seria de se esperar, uma orientação mais teológica e se identificou socialmente às grandes famílias cardeais, em uma versão eclesiástica do mecenato principesco. Trata-se de um humanismo curial ao serviço dos objetivos religiosos e políticos do papado, o que não exclui uma certa sensibilidade às reformas contra os abusos da Igreja.

Fora da Península itálica, o humanismo conhece importantes desenvolvimentos na Europa, ao fim do século XV e início do século XVI. No caso francês, o reinado não ficará indiferente diante do desenvolvimento do humanismo na Itália, o que não se dá apenas como reação nacionalista diante do complexo de superioridade dos eruditos transalpinos. De todo modo, já se disse que a penetração dos métodos críticos próprios ao humanismo se fez lentamente. Gilbert Gadoffre (1997) afirma que a chegada de François I (1494-1547), apesar de todas as esperanças suscitadas entre os humanistas franceses, não modifica de maneira substantiva a situação cultural. É necessário Pavie e a necessidade de restabelecer o prestígio real sobre novas bases para que Francisco I se torne o "pai das letras".

Na França, a figura de Guillaume Budé (1467-1540) domina essa "revolução cultural" da qual Gadoffre descreve bem as particularidades: o papel do mecenato real, a insistência forte sobre a História, a preocupação com uma identidade cultural propriamente nacional. Este último aspecto se passa também em outras regiões e mostra bem como o humanismo é indissociável dos primeiros passos na construção dos Estados modernos. A visão de Gadoffre não deve deixar esquecer a presença antes de Budé de uma corrente de humanistas que não teve talvez o apoio da monarquia, mas que foi capaz de encontrar um lugar na Europa humanista, como é o caso da figura do filósofo e historiador Robert Gaguin (1433-1501).

Alguns traços comuns às correntes humanistas europeias não italianas merecem reflexão, notadamente a fascinação e a repulsa face a Roma, que, bem antes da Reforma, é um dos meios de fabricar identidades culturais nacionais, como no caso da Alemanha. Na Itália, não se estuda o humanismo da fase seguinte a 1517 ou 1530, por conta talvez da decadência política da península, submetida à tutela estrangeira. Os eruditos parecem-se encastelar-se, cortando relação com o mundo e sua evolução.

Em contraposição a essa ideia, Tallon (2002) sustenta que muitos humanistas se adaptam às novas condições da Itália, ainda que suas reflexões filosóficas e políticas não tenham a mesma repercussão que antes. Um dos melhores exemplos disto para ele é Paolo Giovio (1483-1552).

Para um dos grandes historiadores norte-americanos da Renascença, Hans Baron (1900-1988), o humanismo florentino foi originalmente um movimento cívico destinado a defender as instituições republicanas e a liberdade, em especial contra a Milão de Giangaleazzo Visconti (1351-1402). Sob os Médicis, o interesse pela coisa pública se enfraquece, transferindo-se para as esferas "apolíticas" da erudição e da filologia. A segunda metade do século XV marca uma crise desse humanismo cívico, termo cunhado por Baron em 1928.

A ideia de um humanismo cívico foi duramente criticada por James Hankins (2000), em razão da extrema variedade dos engajamentos políticos dos humanistas.

Dos tumultuados anos que vão da expulsão dos Médicis a seu segundo e definitivo retorno em 1530, Florença foi um lugar extraordinário para a reflexão política, da qual Nicolau Machiavel (1469-1527) é sem dúvida a figura dominante, conforme reconstituiu, em análise textual e contextual, o historiador da ideias políticas de origem inglesa, Quentin Skinner.

Já Erasmo de Roterdam (1466-1533), biografado por Huizinga, cuja obra "O elogio da loucura" (1511) é dedicada a Thomas More (1478-1535), é autor que domina a Europa intelectual da primeira metade do século XVI, com influência na Espanha e na Itália. Sobre este humanista, estudado no Brasil por Sérgio Paulo Rouanet no ensaio "Erasmo, pensador iluminista", a versão clássica defende a ideia de que foi um inspirador de correntes reformistas ortodoxas, opostas a Lutero, assim como a conservadores e a heterodoxos.

A compreensão das ideias humanistas se deve em boa parte ao advento da imprensa e do livro na Europa, a partir do século XV. Não obstante, na obra "A educação do Homem moderno 1400-1600" (1995), o historiador italiano Eugênio Garin (1909-2004), influenciado seja pelo idealismo de Benedetto Croce seja pelo marxismo de Antônio Gramsci, aborda os debates em torno da educação na Renascença, mostrando a pluralidade das concepções pedagógicas e chamando a atenção para o fato de que o humanismo não deteve o monopólio do conhecimento. Um dos estabelecimentos de ensino mais conhecidos na França é o Collège de France, instituído nessa época.

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.