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GV CULT - Criatividade e Cultura

O Amor e a Lei em Dom Quixote

GVcult

22/04/2014 09h01

Por Bernardo Buarque de Hollanda. 

"Pensaba en los misterios de la letra escrita,

en esas hebras negras que se enlazan y desenlazan

sobre anchas hojas filigranadas de balanzas…"

Alejo Carpentier, Viaje a la semilla (1944)

 

Nesta quarta e última coluna dedicada ao professor de literatura comparada da Universidade de Yale, Roberto González Echevarría, encerramos nosso ciclo de apresentação dos principais livros do crítico literário cubano. A ideia de apresentá-lo ao público brasileiro é motivada por ocasião de sua visita ao Rio de Janeiro, pela primeira vez, para uma conferência a ser realizada no próximo dia 28 de abril, no CPDOC da Fundação Getúlio Vargas.

Em paper inédito, escrito especialmente para o evento, sua palestra abordará a obra-prima de Gabriel García Márquez: Cem anos de solidão. Por uma coincidência funesta, neste mesmo dia em que redijo a coluna, é anunciado nos noticiários televisivos o falecimento do romancista colombiano García Márquez (1927-2014), pouco mais de um mês depois de ter completado oitenta e sete anos de idade.

GarciaMarquez

Em meio ao pesar e à consternação geral, vamos volver nossa atenção ao conjunto da obra echevarrina. A seleção que propus identificou três livros constitutivos de uma espinha dorsal, entre tantos outros títulos selecionáveis do autor. Principiamos com The voice of the masters (1985), continuamos com Mith and archive (1990) e terminaremos hoje, muito pontualmente, como em todos os textos desse blog, com Love and law in Cervantes (2005).

Aqui podemos dimensionar a estatura do crítico hispano e ibero-americano, para além do latino-americanista, curioso por seu torrão natal, de que foi instado a abandonar em tenra adolescência, quando da eclosão da Revolução Cubana de 1959.

É de um lastro histórico, é de um horizonte geográfico e é de uma autoconsciência humanística mais ampla que parte Echevarría.  É, ademais, de um ponto de vista matricial que o crítico acompanha, com argúcia, a codificação do direito no Ocidente, pari passu com a emergência do romance ocidental, no alvorecer da Europa Moderna.

Como aprendemos nas cartilhas escolares, Miguel de Cervantes está para a futura Espanha, assim como Dante Alighieri está para a futura Itália, William Shakespeare para a futura Grã-Bretanha e Luís de Camões para o então Reino de Portugal. Literatura que é, pois, matriz de uma língua até então falada vulgarmente, mas capaz, por sua vez, de engendrar uma narrativa pátria.

E o que tem a nos dizer a análise echevarriana sobre o romance paródico de cavalaria de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616)? Ao longo de trezentas páginas divididas em treze capítulos, Echevarría observa a relação do engenhoso fidalgo Don Quijote de la Mancha (1605) com sua amada Dulcineia, à luz das forças do amor e da lei. A questão geral levantada diz respeito à observação do impacto do sistema legal espanhol na literatura durante a chamada Era de Ouro, aquela que vai do Renascimento seiscentista ao Barroco setecentista.

Para além da tradição clássica e medieval, a tratar de temas como o heroísmo épico e a honra, Cervantes é visto mediante uma pletora de subgêneros discursivos não-literários. Estes eram contemporâneos aos da literatura emergente, sobretudo aqueles referentes ao sistema legal e penal.

Dois fenômenos históricos foram estratégicos para tanto. Primeiro, a organização do Estado moderno na Espanha, que começara no período dos reis católicos, instituidores das monarquias absolutas. Segundo, o advento da imprensa, que permitira a formação de uma burocracia patrimonial, centralizadora e unificadora de uma documentação escrita, com discursos processuais arquivados, cujos relatos versavam sobre criminosos e pessoas comuns.

Os registros documentados em arquivo alimentaram a imaginação dos escritores. Os transgressores, entre desviantes e corruptos, eram submetidos a punições. Estes, por sua vez, passaram a figurar picarescamente nos textos ficcionais.

Em tal ficção, segundo o argumento esposado pelo autor, a lei teve de lidar de imediato com os conflitos amorosos, em particular no que tange ao casamento. O matrimônio foi um dos contratos sociais mais caros às instituições religiosas e legais. Isto se devia, em parte, à sua capacidade de proporcionar um corpo político estável, como no-lo mostram as alianças familiares inter-reinos.

Com base na díade amor-lei, Cervantes foi pródigo em recriar situações aventureiras e personagens cavalheirescos, envoltos em cenas jurídicas conflituosas. Nestas, o protagonismo da lei, pública e impessoal, aparece na literatura cervantina ao tratar de casos de perversão, de interdição e de litígio amoroso entre homens e mulheres. Tais casos precisavam ser solucionados, contratualmente, para restituir estabilidade à sociedade e para zelar pelos valores provenientes da doutrina religiosa. Doutrina esta dominante na Península Ibérica desde a Idade Média.

Finalmente, segundo a argumentação de Echevarría, foi esse confronto entre os descontroles do desejo e a pátina da lei que possibilitou trazer a terminologia legislativa para o terreno da prosa. As histórias de amor de Cervantes refletem certa mobilidade social de uma época marcada pela difusão do livro e da escrita impressa. O romance castelhano é reflexo também dos embates entre aristocratas progressivamente cônscios de sua decadência. Ao ver erodir de modo gradual os seus privilégios, os fidalgos foram, por isto, tão bem parodiados e representados em Don Quijote.

DQ

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.