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GV CULT - Criatividade e Cultura

Pornopopeia, um livro de extremos

GVcult

24/09/2013 09h30

Por Flavio Lima.

Você já teve a sensação de ler um livro e pensar: por que esse cara não escreve mais parecido com o jeito que a gente fala? Ou de achar que o livro deixa de fora temas como o sexo, a violência, o uso de drogas, com os quais inevitavelmente entramos em contato na vida, mas que parecem ser reprimidos, muitas vezes, na literatura?

Pornopopeia, romance publicado em 2009 por Reinaldo Moraes, dá uma resposta radical a esta questão. O autor não só recria uma forma totalmente plausível de fala, que nos faz ouvir a voz do narrador ao ler o livro, mas adota um ponto de vista que lhe permite abordar diretamente todos aqueles temas mais "proibidos": este narrador, em primeira pessoa, é um cineasta marginal decadente viciado em cocaína, extremamente individualista e imoral, numa busca incessante por experiências sexuais de prazer fácil e descartável. O tema da violência também está muito presente no livro, embora não apareça tão diretamente na figura do narrador. Trata-se mais de algo externo a ele, mas com o qual ele é obrigado a entrar em contato, dado seu vício: o mundo do tráfico, incluindo a contrapartida da violência policial.

Estes três temas principais (sexo, drogas e violência) vão se desdobrando ao longo da primeira parte do livro até chegarem a um clímax, que leva à segunda parte. Nela, as coisas mudam radicalmente. O valor dado a cada um dos temas, assim como o ponto de vista a partir do qual eles são tratados, contribuem para criar uma sensação muito grande de estranhamento em relação à primeira parte. Ou seja, há um movimento interno muito forte, que prende o leitor e o faz continuar a ler de uma forma quase voraz.

A minha experiência com o livro foi assim. Embora relutasse, primeiramente, em começar a leitura de um livro tão extenso (480 páginas na edição comum ou 660 na edição de bolso), acabei por lê-lo em cerca de uma semana. Acredito, em certa medida, que esta voracidade na leitura é algo que o livro incentiva. Ele fala tão diretamente à nossa experiência pessoal e numa linguagem tão próxima e bem-humorada, que acabamos sendo levados, e quando percebemos, já lemos umas 50 páginas em questão de uma hora ou um pouco mais. Soma-se a isso certo interesse pelo desconhecido e pelos temas "proibidos" que são tratados, que também funcionam como empurrões na leitura. Claro que isso pode variar de pessoa para pessoa, mas acho possível que muitos sintam o mesmo ao ler o livro.

Na literatura contemporânea, de forma mais ou menos geral, há uma preocupação muito grande com a questão da relação entre obra e leitor – frequentemente os autores fazem referência a esta relação dentro da própria obra, evidenciando a situação de diálogo que ela propõe. Muito diferente, por exemplo, seria encarar a obra como algo que tem um sentido unívoco, que deve ser extraído pelo leitor. Na literatura contemporânea, o leitor é reconhecido como aquele que contribui com a construção do sentido do livro. É com isso em mente que busquei contar como foi a minha experiência de leitura. Pelo mesmo motivo escrevo esta resenha: para que mais pessoas leiam o livro e somem as próprias experiências à minha. Resumindo: duas cabeças pensam melhor que uma. Três pensam melhor que duas. E assim por diante.

Baseando-me na minha leitura, gostaria de retomar a questão que coloquei anteriormente: a de que o livro incentiva uma leitura voraz. Os temas do sexo e do consumo de drogas se associam fortemente a essa voracidade; o mesmo traço que caracteriza o nosso protagonista, caracteriza também a forma do livro, ou seja: tanto o personagem quanto o leitor entram de cabeça na busca por um prazer (no nosso caso, o da leitura) que nunca se realiza plenamente, que sempre deixa uma inquietação, uma vontade de buscar mais. A rapidez da minha leitura, portanto, pode não ter sido algo meramente pessoal, mas algo que o autor busca em seu modo de escrever, para criar uma identificação entre o seu personagem e o leitor. A linguagem, retomando o que foi dito no início, desempenha aí um papel fundamental.

Essa identificação entre o personagem e o leitor é algo mais importante do que se imagina no primeiro momento, já que nos faz torcer por alguém que é bastante egoísta e imoral. Os acontecimentos vão sendo narrados em meio a longas digressões do narrador. Ele vai nos fazendo compreender os motivos de seu comportamento e mostrando sua personalidade por outro lado criativa e piadista, que cria em nós uma empatia. Desta maneira, acabamos deixando de lado nossas noções preconcebidas de ética e moral para entrar de cabeça numa situação radicalmente contemporânea, onde tais noções encontram uma série de dificuldades, e tudo acaba tendo dois lados, impedindo tomadas claras de posição. Contribui a isso também uma narração que, do ponto de vista objetivo, é enviesada; nós só ficamos com uma versão da história: aquela do próprio protagonista, já que o livro é escrito em primeira pessoa.

Por fim, gostaria de tratar brevemente do título do livro, que até agora ainda deve parecer um pouco obscuro: o que significa pornopopeia? Trata-se de um neologismo criado pela junção das palavras pornô/pornografia com a palavra epopeia. A epopeia é um gênero discursivo que tem suas origens na antiguidade clássica, em textos como a Odisseia e a Ilíada. Ao mesmo tempo, vemos estampada na capa do livro a palavra romance, outro gênero discursivo, este oriundo da era moderna. Ou seja: o livro se coloca como pertencente a dois gêneros discursivos diferentes e, em alguma medida, contraditórios. Como interpretar isso? Para esboçar uma resposta a essa pergunta, devemos primeiro entender melhor cada um dos gêneros e diferenciá-los.

A proposta da epopeia, em linhas bem gerais, é contar a história de um povo, da forma mais abrangente possível, sem deixar de fora nenhum aspecto relevante da vida. A epopeia foi criada em uma época onde não havia um sentimento de fragmentação do indivíduo, e sua integração na vida social era plena, já que a organização da vida social tinha relação com as crenças religiosas, parâmetro comum a todos. Isso deveria, portanto, estar refletido na arte. A forma em que isso tudo se realiza, portanto, é a do mito. A exigência de realismo (ou seja, a contrapartida do mito) é algo próprio das formas modernas, já que elas se referem a uma época onde a organização da vida social deixa de ter relações diretas com a religião. O romance, como forma, está fundado nesta cisão entre sujeito e mundo. Ele traça a trajetória de um indivíduo na busca por um sentido para sua vida, em confronto com um mundo que se lhe apresenta, muitas vezes, como algo hostil.

Poderíamos, no entanto, perguntar: mas a epopeia também não narra a história de um protagonista? Por exemplo, a Odisseia não narra a história de Ulisses? Sim, isso não deixa de ser verdade. No entanto, na epopeia este protagonista não deve ser entendido como um simples indivíduo, mas como a representação simbólica de um povo. O herói da epopeia representa, assim, o fato de não existir cisão entre indivíduo e mundo: ambos estão unificados em uma só figura.

Portanto, a pergunta fundamental que temos de responder, com relação a Pornopopeia, é a seguinte: o protagonista é um herói de epopeia, ou um indivíduo de romance? Devemos dar mais valor ao título do livro, ou à sua caracterização de romance? Ou seja: essa pessoa extremamente individualista e imoral que nos narra sua história deve ser interpretada como alguém diferente de nós, simples indivíduo de romance com o qual podemos aprender algo; ou deve ser visto como uma imagem simbólica do que somos como povo e sociedade? Esta é talvez a pergunta fundamental do livro. Uma reflexão, no mínimo, inquietante, e que o situa dentre a melhor produção literária contemporânea, ou seja: aquela que consegue propor não só temas interessantes, mas formas literárias novas para abordar estes temas. Há elementos na obra que apontam para ambos os lados, e a resposta à pergunta não está dentro da narrativa, mas sim em nossa atitude frente à vida depois de termos lido algo que promove tanta reflexão.

Para qualquer pessoa que se interessa pelo fenômeno da contemporaneidade, e/ou sente-se desconfortável com a realidade que observa no dia a dia, querendo buscar novos pontos de vista para olhar estes problemas, Pornopopeia será uma leitura inesquecível. Sem contar que renderá boas gargalhadas. Mas fica o alerta: não é um livro para quem tem estômago fraco.

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.